sábado, 16 de junho de 2012

A UNIÃO EUROPEIA E A GUERRA FRIA




A DESCOBERTA DE PAULO RANGEL




Paulo Rangel, ex-líder parlamentar do PSD, candidato à presidência do partido nas últimas “directas” e actual deputado ao Parlamento europeu, suspeita que a verdadeira causa dos quase setenta anos de paz na Europa talvez não tenha sido a “construção europeia”, mas a Guerra Fria.

Grande suspeita a de Paulo Rangel, ele que durante tantos anos esteve convencido de que “o grande factor de promoção da paz e de prevenção da guerra no continente tinha sido a construção europeia”.

Num primeiro impulso poderia supor-se que esta descoberta de Rangel, ainda que sob a forma de simples suspeição, estaria relacionada com a atenuação da obsessão anti-socrática que democraticamente o asfixiava, impedindo-o de pensar serenamente.

Mas não. O mal é certamente mais profundo e tem a ver com mitos, com a dificuldade que as pessoas têm em se libertar dos mitos. E um desses mitos é o papel de Adenauer no pós guerra.

Em poucas palavras: derrotado o III Reich na Segunda Guerra Mundial pelas potências aliadas e dividido o território da nova Alemanha em quatro zonas de ocupação, reproduzidas na capital do Reich, apesar de esta se encontrar territorialmente incorporada na zona de ocupação soviética, foi, por força do antagonismo entre os aliados ocidentais e a União Soviética, criada em 1949 a República Federal da Alemanha. Cerca de cinco meses depois, e esgotadas que estavam as hipóteses de consensualizar a reunificação da Alemanha, os soviéticos criaram a leste a República Democrática  Alemã (RDA).

A divisão da Alemanha e, dentro dela, a de Berlim são a imagem perfeita da divisão do mundo em dois blocos antagónicos e marcam também, simbolicamente, o início da Guerra Fria.

A leste, a RDA seguiu o caminho das demais “democracias populares” instaladas nos territórios dos países conquistados pelo Exército Vermelho na sua caminhada vitoriosa até Berlim, alguns deles aliados da Alemanha nazi e outros, apesar de ocupados, com fortíssimo índice de colaboracionismo. Sem mácula quanto a alianças ou colaboracionismo apenas a Polónia e o território da actual República Checa, com excepção obviamente dos sudetas que eram alemães.

A oeste, naquela que veio a ser a República Federal da Alemanha, instalou-se da noite para o dia a democracia de tipo ocidental. Ela, que tão vilipendiada havia sido desde Bismarck, foi aceite com a naturalidade de quem havia vivido um simples pesadelo e que agora acordava para uma vida diferente, feita de presente, com esperança no futuro e total esquecimento do passado. Todos a oeste se tornaram “democratas”, com excepção daqueles que foram “apanhados” pelas medidas de desnazificação. E poucos foram, pois, como as tropas americanas de ocupação muito bem disseram, com aquela ingenuidade de quem ainda se não tinha apercebido do papel que doravante iriam passar a desempenhar no mundo, se todos ou quase todos eram nazis ou cúmplices do nazismo, quem poderia assegurar a administração da Alemanha senão aqueles que tinham colaborado com Hitler? O que doravante era importante era integrá-los numa nova ordem – uma ordem a que eles aderiram sem dificuldade pelo imenso traumatismo que a tétrica aventura hitleriana acabou por lhes causar e também pelo medo que tinham do comunismo soviético.

E foi assim que antes do famoso “milagre económico” alemão se deu o “milagre democrático”. E foi  também assim que o anterior inimigo se transformou em “aliado”. Nada agora se assemelhava ao que aconteceu depois da Grande Guerra. Não havia “Versalhes” nem ocupação da Renânia pelas tropas francesas para pagar as indemnizações de guerra. Havia apenas um desejo fecundo de colaborar no combate ao inimigo tão próximo e sempre presente a leste.

Por outro lado, a destruição causada pela guerra foi de tal ordem que a reconstrução da Alemanha, financiada por crédito muito barato dos Estados Unidos, exigia muita mão-de-obra, acabando por reabsorver sem qualquer dificuldade os cerca de doze milhões de refugiados que se tinham acoitado no território da recém criada RFA. Por isso, a reconstrução nas excelentes condições em que se verificou gerou crescimento e assim, pela primeira vez na Alemanha, democracia era sinónimo de prosperidade. Bona não era Weimar!

E o que se passava no plano estritamente político? Adenauer que subiu ao poder em 1949 e nele se manteve até 1963, aproveitando-se das fricções cada vez mais fortes entre os dois mundos, aderiu à NATO, o que não deixava de ser uma raridade para um país cuja constituição proibia qualquer tipo de militarismo e manteve dentro dela durante largos anos – desde os anos finais de Truman, os oito da presidência de Eisenhower e dois de Kennedy – uma atitude belicista e agressiva relativamente a leste. Sentindo as costas quentes e fazendo parte, como ele próprio dizia, da maior aliança militar da história, ele achava que a questão da reunificação da Alemanha – e para Adenauer a reunificação pressuponha a recuperação das fronteiras de 1937! – e do comunismo eram assuntos que, em última instância, acabariam por ser resolvidos por via militar.

Os prospectos turísticos alemães até à primeira metade da década de sessenta representavam a Alemanha com as fronteiras anteriores ao Anschluss, com a indicação de que se encontravam sob ocupação militar os territórios que não estavam sob administração da RFA. Ou seja, tudo se passava para Adenauer como se não tivesse havido guerra ou como se a guerra fosse algo estranho à Alemanha.

Não adianta num simples post estar a multiplicar os factos que comprovam a natureza revanchista da República de Bona sob Adenauer, como por exemplo, a exigência, já esquecida por quase todos, de serem colocadas em território alemão armas nucleares sob a direcção do governo de Bona, exigência a que somente a partir de Kennedy se colocou um ponto final definitivo. E que dizer da famosa aliança com a França que os propagandistas da Europa tanto apregoam como a verdadeira génese desta enorme confusão que é hoje a “construção europeia”? Para se ser rigoroso com a História não pode deixar de dizer-se que há intenções bem diferentes de ambos os lados do Reno: enquanto para a Adenauer, decepcionado com a posição americana e com as tentativas protagonizadas por Kennedy de um entendimento a Leste que estabilizasse o status quo saído da Guerra, a aliança com a França era a possibilidade de manter viva na Europa a política de força tão do seu agrado e de garantir a “barragem contra o bolchevismo”; para De Gaulle, pelo contrário, ela era entendida como uma ponte de diálogo com o “outro lado” e, acima de tudo, um modo de fugir à tutela americana e marcar uma posição de liderança da França na Europa ocidental.

Como se vê, quimeras de um lado e do outro. No fundo a Europa continuava a ser governada por gente muito marcada pela Guerra e que continuava a pensar ainda segundo os cânones anteriores ao grande conflito.

Do lado da Alemanha, Adenauer acaba por ser afastado para ser substituído pelo chamado pai do milagre alemão, Herhard, pelo qual o anterior Chanceler nutria um não disfarçado desprezo como político. A este seguiu-se Kiesinger e a grande coligação com os social-democratas de Willy Brandt.

Pode dizer-se que a política externa de Bona não se alterou, apesar da mudança de intérpretes, desde a fundação da RFA até à chegada de Willy Brandt. Somente com ele, primeiro, como ministro dos Negócios Estrangeiros e depois como Chanceler é que a RFA aceitou inequivocamente as fronteiras saídas da Segunda Guerra Mundial e iniciou uma política de entendimento a leste, não apenas com a URSS e os Estados mais traumatizados pelo passado recente da Alemanha – Polónia e Checoslováquia – mas também com a própria RDA.

Portanto, o que efectivamente assegurou a paz na Europa foi a Guerra Fria e o entendimento americano-soviético quanto ao status quo saído II Guerra Mundial. A Comunidade Económica Europeia, embora represente um estadio superior de cooperação entre Estados, foi mantendo no seu seio um conjunto de ambiguidades nem sempre bem disfarçadas pela liderança da Europa e das relações desta com os EUA e com a URRS que somente a Guerra Fria, a partir de Kennedy, mas consolidadamente a partir de Nixon, atenuou e fez esquecer.

De facto, a Alemanha começou por se esquecer de que tinha perdido a guerra e quando já se tinha esquecido de que se tinha esquecido de que perdera a guerra recebeu uma prenda inesperada de Moscovo. A França, apesar de duplamente derrotada na guerra (primeiro a França legítima,  depois a de Vichy) e de ter conseguido  sair do conflito com o estatuto de potência vitoriosa - indiscutivelmente devido à acção de De Gaulle -, é que nunca se esqueceu de que Alemanha havia perdido a guerra e assim actuou durante os anos da Guerra Fria. Só quando esta acabou e a Alemanha se reunificou é que os conflitos voltaram a surgir com a intensidade que hoje têm, sendo o primeiro de todos a crise monetária de 1992/93. Mas isso já será “conversa” para outro post.


1 comentário:

Anónimo disse...

A direita está a aceitar que o cimento da "união e solidariedade" na europa ocidental se deveu sobretudo terror que o exército vermelho infundia....(o vermelho esvaiu-se ainda antes do ocidente se aperceber porque se tivesse havido essa percepção a "união" nem teria avançado tanto..)

A repentina conversão democrática dos alemães (e também, por exemplo, dos japoneses)nega o mito de que os povos são invencíveis desde que determinados. O vencedor e ocupante americano é que definiu o guião alterando-o quando entendeu conveniente. No início da ocupação houve um general que disse que os alemães iriam ter sopa ao almoço e sopa ao jantar, logo a seguir, ainda antes do julgamentos de Nuremberga, decidiram permitir a retoma da Alemanha como potência industrial, era do interesse de ambos. Reparações de guerra sempre as houve, neste caso com perda de quase 30% do território histórico. Os 12 milhões que se refugiaram (acoitaram?) foram uma "mais valia" para a recuperação, normalmente seriam considerados um fardo que poderiam justificar o contrário. É curioso que estes refugiados são contemporâneos dos palestinianos...
O post é muito bom mas omite a realidade, acho eu, para além do cenário político. Nada é referido sobre o, gostemos ou não,estrondoso êxito de recuperação económica ao lado da decadência, pelo menos relativa, de outras também então potências industriais. Quanto ao companheiro na desgraça na II GG é confrangedor ver no que se tornou, um gigantesco coio de mafiosos e bêbados.
LUGO